segunda-feira, abril 18, 2005

Há coisas que não são para se perceberem...

9874.jpg



"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dize-la. Muito do que se segue pode ser por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza.
Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dize-lo. O que eu quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível.
Já ninguém aceita amar sem uma razão. Teixeira de Pascoaes meteu-se num navio para ir atrás de uma rapariga inglesa com quem nunca tinha falado. Estava apaixonado, foi parar a Liverpool. Quando finalmente conseguiu falar com ela, arrependeu-se. Quem é que hoje é capaz de se apaixonar assim?
Hoje em dia as pessoas apaixonam-se por uma questão prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão mesmo ali ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornam-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecologica da camaradagem. A paixão que devia ser desmedida é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade ficam"praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas e cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananoides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "da lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Por onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassado ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor. É essa a beleza. É esse o perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa a vida é outra. A vida as vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para se perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa a vida é outra.
A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber.
É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa e o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E vale-la também."

Miguel Esteves Cardoso In "Expresso"
Um amigo enviou-me este texto, achei muito bonito e decidi partilhar convosco...
Beijinhos doces da vossa amante.

8 comentários:

Daniel Aladiah disse...

Querida Loirinha
O Miguel é assim, escreve assim, sente assim, é um poço de contradições inteligentes. Ainda há pouco tempo (um século só) reramente as pessoas se juntavam por amor, os casamentos tinham sempre interesses e os envolvidos, muitas vezes, nem voto na matéria tinham. O amor era para os ricos e expandiu-se com a democratização da riqueza e da educação, mais das vezes pelo impulso da emancipação dos jovens e das mulheres, que o século XX nos trouxe. Contudo, existem muitas perspectivas (até já escrevi sobre o amor eterno, o que contraria a visão do Miguel e é ainda mais romântica) sobre o que é o amor. Todas estão certas e todas estão erradas. Mas julgo que ele confunde o amor com impulso e desejo, defendendo as cenas passionais à boa maneira latina, com faca na liga. É interessante, as não é tudo. Para mim, o amor é para se sentir e deve transmitir-nos a necessidade de o exprimirmos e vivermos de maneiras sucessivamentes diferentes, ajustadas às contingências da vida e da nossa própria evolução. Isso implica comunicação através dos sentidos e das actividades em que os dois se envolvem. Sem isso, vive-se de recordação, de forma ilusória, sem consequência. Podemos ser felizes assim, bastando para tal que saibamos diminuir a dissonância cognitiva. Estou longo, fico por aqui
Um beijo
Daniel

D disse...

Que magnífico que está esse texto!
O autor tem razão, o amor hoje em dia passou a ser uma coisa práctica, os casais gastam valúrdios em festas d casamento e passado 2meses hà o primeiro conflito de ideias e pensam que ~já não há amor. O divórcio chega brevemente. A taxa de divorciados tem vindo a aumentar cada vez mais.

Já diria camões: "amor é fogo que arde sem ver, ferida que doi e não se sente, um contentamento descontente.."

Beijinho grnde :)

NR disse...

Brilhante mesmo! :-)
Bjos

Anónimo disse...

O Miguel Esteves Cardoso, deveria ter falado comigo primeiro!

Porque ainda há amor puro, amor violento, amor paixão, amor... amor... cego, estúpido, martirizante, mil vezes desejado e não correspondido! Ou será que é?

Não sei!

Lê o meu Blog e se entenderes as "entrelinhas", perceberás que o MEC, não vê o amor andar por aí, feito louco!

Abraço e um sorriso ;-)

Unromance disse...

Sim! Muito bonito.. Assim como a musica! Só reparei agora no video. Essa musica é tão tão cheia de historias, pra toda a gente.. :) Beijinho*

Unknown disse...

Olá´esta é a primeira vez que te visito .Sabes fiquei preocupada, pensei que eras tu a amante não amada, é do Miguel ainda bem.Eu gosto dos livros dele.

Anónimo disse...

Desculpa o cinismo mas

AMOR É SÓ AMOR. Amor é aquilo que cada um, ele (ou ela), sentem da forma mais intensa e verdadeira que existe.

O resto é conversa

C

Anónimo disse...

Concordo e não concordo.
Amo e não Amo.
Sinto e não sinto.
Palavras, meras palavras [...]
Os actos dizem-me muito mais, e esses cada vez são mais raros.
No cômputo geral, gostei deste teu post, Isabel.
Beijocas e inté.